Douglas Bookman
Na história do
Universo nunca houve – nem haverá – traição maior. A criatura que representava
a mais magnificente obra de seu Criador ressentiu-se de que sua glória era
apenas emprestada, de que o papel que lhe estava destinado era o de tão somente
refletir a infinita majestade do Deus que lhe deu o fôlego da vida. Dessa
maneira, nasceu no coração de Lúcifer – e, em última análise, no recém-criado
universo moral – o desprezível impulso da rebelião. Esse impulso originou a
insurreição angélica que foi a mais terrível sedição na história em todos os
tempos.
UMA QUESTÃO PRELIMINAR
Por mais
importante e original que tenha sido essa rebelião angélica, as Escrituras não
incluem um registro específico do evento. No Antigo Testamento, Satanás aparece
pela primeira vez no relato da queda de Adão (Gn 3). Ali, no entanto, ele já era
o tentador caído que seduziu os primeiros seres humanos ao pecado. Dessa forma,
já no início das Escrituras, a queda de Satanás é tratada como fato. Mas, por
razões que não são esclarecidas em nenhum lugar, o próprio relato de sua queda
está ausente nesse registro.
Ainda assim, o
evento é lembrado duas vezes nos escritos dos profetas: por Isaías, em meio a
uma inspirada diatribe contra a Babilônia (Is 14.11-23), e, mais tarde, por
Ezequiel, quando ele repreende duramente o rei de Tiro (Ez 28.11-19). Essas
duas passagens contam-nos a maior parte do que sabemos sobre a queda de
Satanás.
Entretanto, aqui
temos algumas dificuldades exegéticas. Em ambas as passagens, a menção da
rebelião de Lúcifer aparece abruptamente num contexto que não trata,
especificamente, de Satanás. Esse fato levou muitos estudiosos da Bíblia a
rejeitar a idéia de que as passagens se referem a uma rebelião luciferiana e a
insistir que elas focalizam exclusivamente os governantes humanos das nações
pagãs às quais são dirigidas.
Apesar disso, é
preferível entender que Isaías e Ezequiel propositalmente queriam levar os
leitores para além dos crimes de reis humanos, guiando-os até a percepção do
grande arquétipo do mal e da rebelião, o próprio Satanás. Essas passagens
incluem descrições que, mesmo levando em conta a inclinação ao exagero por
parte de governantes da Antiguidade, não poderiam ser atribuídas a qualquer ser
humano. O emprego da primeira pessoa do singular (por exemplo: “Eu
subirei...”; “exaltarei o meu trono...”; “me
assentarei...”) em Isaías 14.13-14 refletiria um nível de ostentação
indicativo de insanidade, caso fosse proferido por um mero ser humano, mesmo em
se tratando de um dos monarcas pagãos babilônicos, que a si mesmos divinizavam.
E qual rei de Tiro poderia ser descrito como “cheio de sabedoria e
formosura... Perfeito... nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado...”
(Ez 28.12,15)?
Além disso, a
Bíblia ensina explicitamente que a perversidade do mundo visível é influenciada
e animada por um domínio povoado por espíritos caídos, invisíveis (Dn 10.12-13;
Ef 6.12), e que, em sua campanha traiçoeira e condenável de frustrar os
propósitos do Deus verdadeiro, esses espíritos maus são dirigidos por Satanás, o “deus
deste século” (2 Co 4.4).
É característico
dos escritores bíblicos fazer a conexão entre o mundo visível e o invisível, e
isso de forma tão abrupta que pega o leitor momentaneamente desprevenido.
Quando Pedro expressou seu horror ante o pensamento da morte de Jesus, o Senhor
lhe respondeu “Arreda, Satanás!” (Mt 16.23; cf. 4.8-10). De
forma semelhante, repentinamente e sem aviso, o profeta Daniel pula de uma
descrição profética sobre Antíoco Epifânio (Dn 11.3-35) para uma descrição
similar do Anticristo dos tempos do fim (Dn 11.36-45). Antíoco, governante
selêucida no período intertestamentário, precede o vilão maior que conturbará a
terra nos últimos dias. Um salto abrupto e não-anunciado do mundo político
ganancioso, auto-engrandecedor, visível, para o drama arquetípico que se
desenrola num mundo invisível aos seres humanos – mas que, apesar de não ser
visto, deu origem às atitudes denunciadas nessas passagens –, tal salto não
está fora de lugar nas Escrituras.
Finalmente, por
trás das conexões feitas nessas duas passagens pode muito bem estar um tema que
freqüentemente retorna nas Escrituras. Nos tempos primitivos da Terra após a
queda, os rebeldes de Babel estavam determinados a construir “uma
cidade e uma torre” (Gn 11.4). A cidade era um centro de atividade
comercial, enquanto a torre representava o ponto focal do culto pagão. Essa
dupla caracterização do cosmo como expressão de egoísmo (o espírito ganancioso
do comercialismo não-santificado) e de rebelião (a busca por ídolos) ressoa ao
longo de toda a Palavra de Deus, chegando a um clímax em Apocalipse 17-18, onde
anjos que se mantiveram fiéis a Deus anunciam a tão esperada e muito merecida
destruição da Babilônia religiosa e comercial.
É instrutivo notar
que enquanto todo o trecho de Ezequiel 26-28 repreende severamente a Tiro – o
mais importante centro de comércio e de riqueza nos dias desse profeta – Isaías
14 denuncia Babilônia, que representa o centro da falsa religião ao longo de
toda a Escritura. Talvez essa caracterização do cosmo caído como “cidade e
torre” – tão importante naquilo que a Escritura afirma em relação ao mundo em
rebelião contra Deus – ajude a explicar o salto dado pelos profetas nas
passagens que consideramos. Quando contemplavam a cultura de seu tempo, que
incorporava perfeitamente um elemento do cosmo caído, cada um deles se sentiu
compelido pelo Espírito superintendente de Deus a focalizar a rebelião angélica
dos tempos primitivos, a qual animava a rebelião humana que estavam denunciando.
Dessa forma, essas
duas críticas severas, que identificam os espíritos perversos de cobiça
inescrupulosa e rebelião espiritual, ajudam a explicar por que tais espíritos
predominam tantas vezes ao longo da história humana. Os textos referidos, ao
mesmo tempo, também antecipam a destruição profeticamente narrada em Apocalipse
17 e 18.
A LINHAGEM DE SATANÁS
De Isaías 14 e
Ezequiel 28 emerge um quadro relativamente extenso de Satanás antes de sua
rebelião.
Sua pessoa: Ele
foi o ser mais exaltado de toda a criação (Ez 28.13,15), a mais grandiosa das
obras de Deus, um ser celestial radiante, que refletia da maneira mais perfeita
o esplendor de seu Criador. Assim, ele apropriadamente era chamado de Lúcifer.
Essa palavra vem de uma raiz hebraica que significa “brilhar”, sendo usada
unicamente como título para referir-se à estrela de maior brilho e cujo
resplendor mais resiste ao nascimento do Sol. O nome Lúcifer tornou-se
amplamente usado como título para Satanás antes de sua rebelião porque é o
equivalente latino dessa palavra. Na realidade, é difícil saber com certeza se
o termo foi empregado com o sentido de nome próprio ou de expressão descritiva.
Seu lugar: Ezequiel
afirmou que esse anjo exaltado estava“no Éden, jardim de Deus” (Ez 28.13). Aqui,
a referência não é ao Éden terreno que Satanás invadiu para tentar a
humanidade, mas à sala do trono em que Deus habita em absoluta majestade e
perfeita pureza (veja Is 6; Ez 1). Ezequiel 28 também chama esse lugar de “monte
santo de Deus”, onde Lúcifer andava “no brilho das pedras” (v.
14).Essas descrições não são apropriadas ao Éden terreno, mas adequadas à
sala do trono de Deus, conforme representações em outros lugares da Escritura.
Sua posição: Satanás
é denominado “querubim da guarda ungido” (Ez 28.14). Querubins
representam a mais alta graduação da autoridade angélica, sendo seu papel
guardar simbolicamente o trono de Deus (compare os querubins esculpidos
flanqueando a arca da aliança – o trono de Javé – no Tabernáculo ou Templo, Êx
25.18-22; Hb 9.5; cf. Gn 3.24; Ez 10.1-22). Lúcifer foi ungido (consagrado) por
sentença deliberada de Deus (Ez 28.14: “te estabeleci”) para a
tarefa indizivelmente santa de guardar o trono do todo-glorioso Criador. Ele é
descrito como sendo dotado de beleza inigualável, vestido de luz radiante,
equipado com sabedoria e capacidade ilimitadas, mas também criado com o poder
de tomar decisões morais reais. Portanto, a obrigação moral mais básica de
Satanás era a de permanecer leal a Deus, de lembrar sempre que,
independentemente de quão elevada fosse a sua posição, seu estado era o de um
ser criado.
A QUEDA DE SATANÁS
Neste ponto,
encontramo-nos diante de um dos mais profundos mistérios do universo moral,
conforme revelado nas Escrituras: “Como é que o pecado entrou no universo?”
Está claro que a entrada do pecado tem conexão com a rebelião de Satanás. Mas,
como foi que o impulso perverso surgiu no coração de alguém criado por um Deus
perfeitamente santo? Diante de tal enigma, temos de reconhecer que as coisas
encobertas de fato pertencem a Deus; as reveladas, no entanto, pertencem a nós
(Dt 29.29). E três dessas realidades claramente reveladas merecem ser
enfatizadas:
Primeiro: a
queda de Lúcifer foi resultado de sua insondável e pervertida determinação de
usurpar a glória que pertence unicamente a Deus. Esse fato é explicitado em uma
série de cinco afirmações que empregam verbos na primeira pessoa do singular,
conforme registradas em Isaías 14.13-14. Nisto consiste a essência do pecado: o
desejo e a determinação de viver como se a criatura fosse mais importante que o
Criador.
Segundo: Satanás
é inteira e exclusivamente responsável por sua escolha perversa. Nisso existe
uma dimensão inescrutável. Alguns têm argumentado que Deus deve ter Sua parcela
de responsabilidade por este (e todo outro) crime, porque, caso fosse de Seu
desejo, poderia ter criado um mundo em que tal rebelião fosse impossível.
Outros dizem que, se Deus tivesse criado um mundo em que apenas se pudesse
fazer o que o seu Criador quisesse, nele não poderiam ser incluídos agentes morais
feitos à imagem de Deus, dotados da capacidade de tomar decisões reais – e,
conseqüentemente, de escolher adorar e amar a Deus. Há verdade nessa
observação, mas também há mistério. O relato deixa claro que o orgulho fez com
que Lúcifer caísse numa terrível armadilha (Is 14.13-14; Ez 28.17; cf. 1 Tm
3.6), mas nada explica como tal orgulho de perdição pode surgir no coração de
uma criatura de Deus não caída e perfeita.
No entanto, não há
mistério quanto ao fato de que Satanás é, totalmente e com justiça, responsável
pelo seu crime. Ezequiel 28.15 afirma explicitamente que Lúcifer era perfeito
desde o dia em que foi criado, “até que se achou iniqüidade em ti”. A
culpabilidade moral é dele, e apenas dele. Na verdade, em toda sua extensão, a
Bíblia afirma que Deus governa soberanamente o universo moral e controla todas
as coisas – inclusive a maldade de homens e anjos – para que correspondam aos
seus perfeitos propósitos. Mas ela também ensina que Deus não deve e não será
responsabilizado por essa maldade, em qualquer sentido.
Finalmente, por
causa de sua rebelião, Satanás tornou-se o arquiinimigo de Deus e de tudo o que
é divino. Sua queda – bem como a dos espíritos que se uniram a ele – é
irreversível; não há esperança de redenção. Satanás foi privado da comunhão com
o Deus santo de forma final e irrecuperável. Para ser exato, Satanás ainda tem
acesso à sala judicial do trono do Universo por causa de seu papel de acusador dos
irmãos, papel este que lhe foi designado divinamente (Jó 1 e 2; Zc 3; Lc 22.31;
Ap 12.10). Tal acesso, no entanto, é destituído da comunhão com Deus ou da Sua
aceitação. Devido à sua traição, que foi a mais terrível na história do cosmo,
Satanás e seus anjos somente podem esperar a condenação e a punição eternas (Mt
25.41). Fonte: chamada.com.br